Revue du Mauss permanente (https://journaldumauss.net)

Genauto Carvalho de França Filho

Genauto Carvalho de França Filho :
Teoria e Prática em Economia Solidária. Problemática, Desafios e Vocação

Texte publié le 8 de Maio de 2007

Un beau panorama de l’économie populaire et solidaire au Brésil qui pointe sur les enjeux politiques de sa consolidation, précédé d’une présentation fort synthétique du cadre conceptuel que Genauto Carvalho de França Filho se donne pour l’appréhender.

Resumo do texto [1]

A palestra explora inicialmente a dimensão conceitual da temática, especialmente sua fecundidade contida numa abordagem antropológica do assunto, em que são salientadas as possibilidades de uma re-significação do sentido do agir econômico em sociedade. Num momento seguinte, o tema da economia solidária é abordado como um campo de práticas em constituição no Brasil. Neste momento, discute-se suas diferentes modalidades de auto-organização sócio-econômica e política. Sublinham-se, neste momento, algumas problemáticas e desafios atravessando o campo, especialmente as interrogações sobre suas possibilidades concretas em termos de reais capacidades em gerar desenvolvimento territorial sustentável e constituir-se como alternativa efetiva em relação à forma de desenvolvimento predominante que é centrado na noção de economia de mercado. Salienta-se ao final a vocação fundamental de tais práticas, contidas em seu conceito original, explorando-se em que consiste a idéia de uma outra economia associada ao tema.

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Introdução

A temática da economia solidária vem conquistando nos últimos anos no Brasil uma visibilidade cada vez mais importante. Seja através dos inúmeros trabalhos científicos que pouco a pouco aparecem em várias universidades e em diferentes níveis, entre o ensino de graduação e pós-graduação, a pesquisa e a extensão, seja através da própria dinâmica no seio da sociedade civil e dos movimentos populares que conhecem a emergência crescente de novas iniciativas neste âmbito, seja ainda através das inúmeras experiências de políticas públicas empreendidas de modo progressivo em diferentes cantos do país.
Esse apelo crescente pelo assunto tem conduzido a uma complexidade no seu tratamento, tornando a economia solidária um objeto sujeito a múltiplas possibilidades de compreensão enquanto temática. Neste sentido, ao menos cinco caminhos para sua discussão aparecem possíveis :

a) Enquanto discussão conceitual: um modo fecundo de conhecer o tema é sem dúvida tratá-lo no nível conceitual, o que permite importantes reflexões sobre o sentido do agir econômico em sociedade. Nesse nível de discussão, o tratamento da economia solidária pode caminhar através de diferentes abordagens, entre enfoques economicistas e outros olhares mais antropológicos. O intuito aqui é de fortalecer uma compreensão teórica do assunto.
b) Enquanto discussão contextual: neste nível a economia solidária é abordado a partir de sua manifestação concreta na realidade - como um problema de sociedade na contemporaneidade do capitalismo. Importa salientar neste sentido como se situa o assunto em relação a outras questões cruciais da atualidade em diferentes contextos societários como crise do trabalho, exclusão social e combate a pobreza, luta pela desigualdade social e modos de desenvolvimento local sustentável, etc. Em resumo, neste nível busca-se analisar a economia solidária como fenômenos e práticas investigativas situadas em contextos societários específicos.
c) Enquanto estudo de caso: neste nível, procura-se compreender a economia solidária enquanto fenômeno em si, a partir de suas práticas organizativas singulares. A idéia é de entender sua dinâmica mais geral, partindo da análise de experiências concretas na forma de estudos de caso.
d) Enquanto metodologia de intervenção: neste nível, a economia solidária é abordada como uma tecnologia social. Ou seja, um instrumento ou ferramenta para geração de trabalho e renda e promoção de desenvolvimento sustentável em territórios caracterizados por alto grau de vulnerabilidade e exclusão social. Neste sentido, a idéia é de discutir a economia solidária no nível da operacionalidade mesmo das iniciativas, no sentido da formatação de técnicas ou tecnologias sociais para o fomento de transformações sociais. O caráter do conhecimento aqui assume certo grau elevado de prescrição, no intuito de sugerir-se meios de intervenção na realidade.
e) Enquanto política pública: esta é a modalidade mais recente de tratamento do assunto que vem ganhando status de política pública em função das inúmeras experiências já disseminadas em diferentes partes do país e em outros países, no interior das estruturas de governo em seus vários níveis. Neste nível, discute-se o caráter desse gênero novo de política pública, bem como, seus efeitos e resultados alcançados.

Diante desse panorama apontando o grau de abrangência possível no tratamento da temática, o presente trabalho tem intuito de transversalidade no sentido de fixar um recorte de apresentação do tema da sua dimensão teórica à sua apreensão enquanto prática. O propósito do texto é antes de tudo didático, no sentido de apresentar o tema para o leitor neófito no assunto.

Nesta perspectiva, o texto explora inicialmente a dimensão conceitual da temática, especialmente sua fecundidade contida numa abordagem antropológica do assunto, em que são salientadas as possibilidades de uma re-significação do sentido do agir econômico em sociedade. Num momento seguinte, o tema da economia solidária é abordado como um campo de práticas em constituição no Brasil. Neste momento, discute-se suas diferentes modalidades de auto-organização sócio-econômica e política. Sublinham-se, neste momento, algumas problemáticas e desafios atravessando o campo, especialmente as interrogações sobre suas possibilidades concretas em termos de reais capacidades em gerar desenvolvimento territorial sustentável e constituir-se como alternativa efetiva em relação à forma de desenvolvimento predominante que é centrado na noção de economia de mercado. Salienta-se ao final a vocação fundamental de tais práticas, contidas em seu conceito original, explorando-se em que consiste a idéia de uma outra economia associada ao tema.

1. Desconstruindo um conceito: a advertência necessária

A compreensão da natureza singular das práticas de economia solidária supõe desconstruir a concepção habitual sobre o fato econômico que o identifica a noção de mercado ou troca mercantil.

Esta visão da economia como sinônimo de mercado encontra respaldo numa chamada definição formalista de economia, conforme os termos de Polanyi (1975). Segundo esta definição, a economia é entendida como “toda forma de alocação de recursos raros para fins alternativos” (Robbins apud Caillé, 2003). Esta aliás é a definição encontrada na maioria dos manuais de economia. Trata-se, neste sentido, de uma definição de economia que a assimila ao fato de economizar recursos raros.

De modo mais sintético, conforme sugere Caillé (2003), esta definição formalista compreende por economia “todo comportamento visando economizar recursos raros procedendo sistematicamente a um cálculo de custos e benefícios envolvidos numa decisão pensada como uma questão de escolha racional”.

Ao menos duas implicações problemáticas podem ser constatadas em decorrência dessa definição, indicando seu caráter reducionista. A primeira diz respeito ao pressuposto de escassez caracterizando a realidade e meio ambiente econômico a priori, através da ênfase sobre a noção de recursos raros. A segunda é relativa a visão de natureza humana, cujo comportamento reduz-se a uma questão de escolha racional, como se o próprio da ação e conduta humana fosse de proceder sempre a um “cálculo utilitário de conseqüências”, segundo a expressão de Guerreiro Ramos (1981). Em suma, uma tal definição formalista de economia baseia-se na axiomática do interesse (Caillé, 2002).

A definição substantiva, por outro lado, especialmente em seu sentido polanyiano, compreende a economia como “um processo institucionalizado de interação entre o homem e a natureza que permite um aprovisionamento regular de meios materiais para satisfação de necessidades” (Caillé, 2003). Este sentido substantivo relaciona-se a concepção aristotélica de economia e a própria etimologia da palavra economia, remetendo a noção de ciência da boa gestão da casa (oikós), ou das condições materiais de existência.

Inspirados numa concepção muito próxima desta, os economistas clássicos ingleses (incluindo Marx) vão enxergar a economia política como o estudo científico da produção, da troca e da distribuição da riqueza material, ou ainda, conforme resume Caillé (2003), “a ciência dos sistemas econômicos, entendidos como sistemas de produção e de intercâmbio de meios para satisfazer necessidades materiais”.

2. Entre o conceito e a prática : a vocação da economia solidária como fundamento de uma outra economia

Combinando lógicas econômicas diversas

A compreensão em síntese sobre uma perspectiva substantiva de leitura da economia pode, em resumo, identificar-se a idéia de economia como toda forma de produção e de distribuição de riqueza – o que significa assumir o pressuposto básico de uma definição de economia como economia plural. Como as formas de “fazer economia” variaram historicamente, já que encontram-se distintas formas de produzir e distribuir riqueza nas diferentes culturas humanas ao longo dos tempos, pode-se então, a partir dessa concepção, reconhecer diferentes economias, o que Polanyi (1983) chama de diferentes princípios do comportamento econômico: o mercado auto-regulado, a redistribuição, a reciprocidade e a domesticidade.

Estes diferentes princípios históricos do comportamento econômico podem resumir-se a três formas de economia (Laville, 1994) com o rearranjo de tais princípios na modernidade. Assim, economia entendida como toda forma de produzir e distribuir riquezas admite :

a) uma economia mercantil – fundada no princípio do mercado auto-regulado. Trata-se de um tipo de troca marcado pela impessoalidade e pela equivalência monetária, limitando a relação a um registro puramente utilitário. Pois, neste tipo de troca/relação o valor do bem (que se mede pelo seu preço) funda a lógica do sistema, ao contrário do primado do valor do laço ou da relação social que se busca numa lógica reciprocitária ;

b) uma economia não mercantil – fundada no princípio da redistribuição. Ou seja, marcada pela verticalização da relação de troca e pelo seu caráter obrigatório, pois aparece a figura de uma instância superior (o Estado) que se apropria dos recursos a fim de distribuí-los ;

c) uma economia não monetária – fundada no princípio da reciprocidade. Ou seja, um tipo de relação de troca orientada principalmente segundo a lógica da dádiva, tal como descrita por M.Mauss (1978). A dádiva compreende três momentos: o dar, o receber e o retribuir. Neste tipo de sistema, os bens circulam de modo horizontal e o objetivo da circulação destes bens e/ou serviços vai muito além da satisfação utilitária das necessidades. Trata-se sobretudo de perenizar os laços sociais. A lógica da dádiva obedece assim a um tipo de determinação social específica, pois, ao mesmo tempo livre e obrigada, a dádiva é essencialmente paradoxal (França Filho e Dzimira, 1999).

Em resumo, a noção de economia plural, que aqui adotamos como desdobramento da opção por uma definição substantiva de economia, corresponde a idéia de uma economia que admite uma pluralidade de formas de produzir e distribuir riquezas. Esse modo de conceber (ou entender) o funcionamento da economia real, além de ampliar o olhar sobre o econômico, para além de uma visão dominante que reduz seu significado à idéia de economia de mercado, permite ainda perceber certas singularidades próprias as práticas de economia solidária.

A primeira dessas singularidades diz respeito a possibilidade de pensar as práticas de economia solidária como uma projeção no nível micro ou meso-social desse conceito macro-social de economia plural. A segunda concerne a possibilidade de enxergar a economia solidária como uma articulação inédita dessas três formas de economia, inventando assim um outro modo de instituir o ato econômico, ao invés de ser concebida como uma “nova economia” que viria simplesmente somar-se as formas dominantes de economia, num espécie de complemento servindo de ajuste às disfunções do sistema econômico vigente (como se a economia solidária tivesse a função de ocupar-se dos pobres e excluídos do sistema econômico, ocupando assim uma espécie de setor a parte num papel funcionalmente bem definido em relação ao conjunto). A terceira singularidade remete a possibilidade de pensar as práticas de economia solidária como modos de gestão de diferentes lógicas em tensão nas dinâmicas organizativas. Neste sentido, enfatiza-se o desafio fundamental da busca do equilíbrio necessário a sustentabilidade de tais práticas em meio a esta tensão de lógicas.

Contudo, para além dessa combinação de diferentes lógicas econômicas enquanto traço que singulariza as práticas de economia solidária como fundamento de uma outra economia, importa salientar ainda uma segunda vocação de tal forma de economia que aqui definimos como construção conjunta da oferta e da demanda.

Construindo conjuntamente a oferta e a demanda

Tal vocação deve ser compreendida assumindo-se o pressuposto de entendimento da economia solidária como iniciativas de natureza associativa ou cooperativista envolvendo moradores num determinado contexto territorial que buscam a resolução de problemas públicos concretos relacionados à sua condição de vida no cotidiano, através do fomento à criação de atividades sócio-econômicas. Neste sentido, a criação das atividades (sócio-produtivas) ou a oferta de serviços, são construídas (ou constituídas) em função de demandas reais (genuínas) expressas pelos moradores em seu local. Tal economia estimula, então, no território um circuito integrado de relações sócio-econômicas envolvendo produtores e/ou prestadores de serviço em articulação com consumidores e/ou usuários de serviços, numa lógica de rede de economia solidária.

Assim, neste tipo de economia, a consideração sobre oferta e demanda como entidades abstratas (supostamente vocacionadas a harmonizar-se sempre, graças a ação transcendente de uma certa mão “boba”, isto é, invisível – num processo mais conhecido como auto-regulação do mercado) perde sentido. Do mesmo modo que a competição também deixa de ter importância nesta lógica. Isto porque o objetivo da rede é a ruptura com a dicotomia habitual (em regimes de mercado supostamente auto-regulado) entre a produção e o consumo (pelos seus efeitos danosos muitas vezes em temos sociais...) e o estímulo a livre associação entre produtores e consumidores (ou prestadores de serviços e usuários), permitindo a afirmação do conceito de prossumidores.

Nesta economia de prossumidores, a regulação ocorre através de debates públicos concretos no espaço associativo, num exercício de democracia local em que os próprios moradores planejam e decidem sobre a oferta de produtos e/ou serviços (ou seja, a criação das atividades sócio-econômicas) em função das demandas efetivas identificadas precedentemente por eles próprios.

Finalmente, a construção conjunta da oferta e da demanda como característica–chave dessa outra economia estimulada supõe ainda, no nível da ação, uma articulação fina entre dimensões sócio-econômica e sócio-política. Isto porque a elaboração das atividades sócio-produtivas conjuga-se à uma forma de ação pública: trata-se de moradores num determinado território debatendo politicamente seus problemas comuns e decidindo seu destino. Tais iniciativas tem vocação, desse modo, a constituir-se também como formas inéditas de espaço público em seus respectivos territórios de pertencimento.

Superando alguns reducionismos de visão

Em resumo, os termos do debate que empreendemos acima como modo de compreensão da temática da economia solidária apresenta ainda o mérito de permitir ultrapassar quatro tipos de reducionismo amplamente praticados na análise teórica e que dificulta sobremaneira um entendimento mais arejado deste assunto :

a) A irredutibilidade da idéia de empresa (como propósito) à empresa mercantil :

Um desses reducionismos é a tendência a identificar a idéia de empresa produtiva como sinônimo necessário de empreendimento lucrativo e fins utilitários. Tal modo de pensar anula as possibilidades de ações coletivas organizadas de natureza produtiva e elaborando atividades econômicas sem fins de acumulação privada e em benefício de grupos e comunidades territoriais. Isto implica ampliar o conceito de empresa produtiva, para além da norma capitalista, assim como, redefinir-se os parâmetro de gestão comumente utilizados na direção de um maior desenvolvimento e institucionalização de formas autogestionárias.

b) A irredutibilidade da idéia de economia à troca mercantil :

Um segundo reducionismo susceptível de superação nesse debate é aquele que identifica à idéia de economia exclusivamente à lógica utilitarista da economia de mercado ou da troca mercantil. Tal reducionismo impede as possibilidades de uma ampliação da compreensão sobre o que seja o ato econômico e seu sentido para a vida em sociedade, na direção de sua re-significação enquanto forma de produzir e distribuir riquezas. É assim que a superação de tal reducionismo permite enxergar as singularidades das formas muito diferentes de instituir a economia, entre as quais aquela que coloca a solidariedade no centro da elaboração de atividades produtivas.

c) A irredutibilidade da idéia de política à estado :

Um terceiro reducionismo consiste a separar à política da sociedade, ou seja, das práticas cotidianas dos cidadãos em seus respectivos territórios, como se o lócus fundamental para tal fim fosse exclusivamente as estruturas de estado. A visão da economia solidária aqui trabalhada insiste na idéia de uma economia não como um fim em si mesmo (como na lógica de mercado), mas como um meio a serviço de outras finalidades (sociais, políticas, culturais, ambientais, etc.). Isto significa conceber a elaboração de atividades econômicas através de iniciativas organizadas como também formas de resolução de problemas públicos concretos num determinado território. Ou seja, as formas de economia solidária podem também ser percebidas como modos de ação pública, isto é, de fazer política no seio da própria sociedade, na medida em que tais iniciativas voltam-se para resolver problemas públicos vividos coletivamente num determinado contexto territorial. Trata-se, evidentemente, do fomento a uma política do cotidiano nos bairros e comunidades que incitam cidadãos a agir.

d) A irredutibilidade da ação humana à ação interessada :

Ao contrário das abordagens da ação social em termos de escolha racional, como se o próprio da ação humana fosse proceder sempre e exclusivamente segundo um cálculo utilitário de conseqüências, numa visão que enfatiza a dimensão estratégica dos comportamentos individuais, a perspectiva da economia solidária abre-se muito mais para uma visão complexa do humano. Este é pensado como antes de tudo um ser simbólico, dotado de valores, e cujo comportamento não pode ser entendido em termos de previsibilidade, mas sobretudo é marcado pela incerteza. Se a necessidade, impelindo por vezes os atores à condutas utilitárias constitui um elemento não desprezível na análise dessa realidade, por outro lado tal fator não pode ser considerado o motor exclusivo na explicação das condutas humanas, sobretudo em matéria de economia solidária.

3. Mergulhando na prática: contexto e problemática de uma economia popular e solidária no Brasil

Sobre a realidade do fenômeno em si mesma, importa apresentar neste momento algumas considerações permitindo compreender a economia solidária como um campo de práticas em construção. Nossa hipótese é de que a dinâmica desse campo parece evoluir de formas de auto-organização sócio-econômica em direção às formas de auto-organização sócio-política, o que nos leva a pensar tal campo também como um tipo de movimento social de natureza singular. Isto precisamente em função da característica dos atores que o compõe.

Consideraremos a seguir quatro categorias de atores ou instâncias organizativas compondo o campo da economia solidária no Brasil. A primeira representa o que poderíamos definir como organizações de primeiro nível, que são os empreendimentos econômicos solidários (EES). Uma segunda categoria de atores inclui as chamadas organizações de segundo nível, ou as entidades de apoio e fomento (EAF). Em seguida, uma terceira categoria, com diferenças marcantes em relação às duas outras pelo fato de constituírem-se quase que exclusivamente como formas de auto-organização política, podem ser ilustradas através dos exemplos das redes e dos fóruns de economia solidária. Por fim, um quarto ator pode ser representado através de uma espécie de nova institucionalidade pública de Estado, conforme ilustram os exemplos de uma rede de gestores de políticas públicas de economia solidária, ou da própria secretaria nacional para a economia solidária (Senaes) – vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego, ou ainda, através de uma série de outras instâncias políticas de Estado, na maioria das vezes em forma de secretarias ou mesmo diretorias ou departamentos, que estão tentando construir políticas públicas de economia solidária em governos municipais ou estaduais.

Um desenho do campo da economia popular e solidária no Brasil

As formas de auto-organização econômica: a centralidade dos EES

As organizações de primeiro nível ou empreendimentos econômicos solidários (EES) representam o núcleo fundamental de constituição do campo. Trata-se das formas, por excelência, de auto-organização sócio-econômica. Neste âmbito podem-se alinhar diferentes experiências (podendo ser vistas como categorias de EES), permitindo distinguir variadas práticas de economia solidária. Por exemplo, as finanças solidárias envolvem experiências de bancos populares, cooperativas de crédito e mais recentemente ganha força a noção de bancos comunitários. Existe ainda iniciativas que participam de uma categoria mais conhecida como comércio justo, assim como, existe o segmento do chamado cooperativismo popular, como expressão talvez majoritária em termos de quantidade no campo mais geral. Deve-se incluir ainda iniciativas como os clubes de troca, participando de uma categoria que poderíamos definir como “economia sem dinheiro”, que são formas muito específicas de práticas de economia solidária. Em seguida, deve-se salientar as associações, que constroem redes de práticas. Um caso muito conhecido no Brasil, e talvez emblemático, é a associação de moradores do conjunto Palmeiras, em Fortaleza (CE), conhecido como o Banco Palmas. Ele consegue promover uma articulação entre diversas categorias de práticas de economia solidária, porque ali reúnem, ao mesmo tempo, finanças solidárias, comércio justo e cooperativismo popular. (ver França Filho, 2006; França Filho e Laville, 2004, França Filho e Silva Junior, 2006)

Um primeiro traço marcante sobressaindo-se de um olhar inicial sobre este primeiro nível de auto-organização concerne o caráter heterogêneo do campo da economia solidária. Uma heterogeneidade refletida na presença ao mesmo tempo de cooperativas populares ou cooperativas de trabalho e produção, bancos comunitários, organizações que recuperam a massa falimentar pelos trabalhadores da antiga empresa e tentam criar um sistema de autogestão, clubes de troca, associações de serviços, etc. Neste sentido, o grau de heterogeneidade do campo deve ser considerado em relação a vários níveis de análise. O primeiro deles diz respeito ao âmbito de atuação das práticas, permitindo distinguir a economia solidária em sub-campos como as finanças solidárias, o comércio justo, as formas de economia sem dinheiro, o cooperativismo popular ou as empresas autogeridas. Um segundo nível de análise compreende as diferenças relativas ao grau de institucionalidade das próprias iniciativas, o que permite distinguir práticas mais consolidadas, envolvendo número significativo de pessoas e mobilizando recursos importantes, com outras iniciativas de menor porte, beirando a informalidade muitas vezes e enfrentando grandes dificuldades no plano da sua sustentabilidade e nível de renda gerado. Um terceiro elemento importante relativo a heterogeneidade dentro do campo da economia solidária diz respeito aos propósitos mesmo das iniciativas, o que distingue particularmente um empreendimento econômico solidário (EES) de uma entidade de apoio e fomento (EAF).

Descrevendo o papel das entidades de apoio e fomento (EAF): uma condição singular

As entidades de apoio e fomento, como o próprio nome sugere, são estruturas organizativas voltadas para assessoria dos próprios empreendimentos econômicos solidários. Tais entidades de apoio e fomento podem ser organizações não governamentais com tradição no trabalho de organização popular ou assessoria aos movimentos sociais; podem ser também Ongs sem tal tipo de tradição, porém detentora de expertise no trabalho e organização de base social ou num determinando segmento específico das práticas de economia solidária; podem ser ainda estruturas organizativas criadas no seio de universidades, em geral ligadas a centros de pesquisa ou programas de extensão; ou, finalmente, podem ser estruturas de coordenação de redes.

As entidades de apoio e fomento contam em geral com uma base sócio-profissional de composição institucional altamente qualificada. Elas representam, de certo modo, a porção da sociedade civil mais organizada e altamente institucionalizada atuando no campo da economia solidária. Seu papel é fortemente marcado pelo caráter de mediação social. Uma mediação entre o mundo dos empreendimentos (EES) com suas lógicas próprias e as injunções relativas ao marco institucional mais amplo no qual inscrevem-se os empreendimentos.

Para tanto, além de atuarem muitas vezes no próprio fomento à criação de empreendimentos, o apoio fornecido pelas EAF costuma situa-las como co-responsáveis (ao menos temporariamente) do processo de gestão dos empreendimentos com vistas a consolidação do seu processo de sustentabilidade.

Da economia popular à economia popular e solidária: desafios e problemática

Reside precisamente neste aspecto, nos parece, o maior desafio para a consolidação desse campo de práticas. Ou seja, como tornar sustentável iniciativas sócio-produtivas de base coletiva, democrática e solidária num marco institucional dominado pela norma da competição e da heterogestão ? Como tornar perene o exercício prático de uma outra economia no contexto de um sistema à predominância de economia de mercado ? O que significa ser viável em matéria de economia solidária ? Que estratégia deve guiar o caminho das práticas de economia solidária neste contexto: radicalizar a disputa com o capital investindo na competitividade dos EES ou construir modos próprios de institucionalização de um outro agir econômico com base em regulações territoriais centradas no papel das associações locais entre produtores e consumidores (ou redes de economia solidária) ?

Para uma compreensão mais fina desse desafio é preciso re-situar o contexto de uma economia solidária brasileira, especialmente na sua relação com uma tradição mais antiga de economia popular que parece exercer forte influencia na constituição de grande parte das práticas neste campo. Os limites e fronteira entre as duas noções deve esclarecer o sentido da expressão economia popular e solidária.

A economia popular diz respeito a um conjunto de atividades de produção, comercialização ou prestação de serviços efetuadas coletivamente (e sob diferentes modalidades do trabalho associado) pelos grupos populares, principalmente no interior de bairros pobres e marginais das grandes cidades latino-americanas. Tais grupos se estruturam, em geral, de modo bastante informal e encontram nas relações de reciprocidade tecidas no cotidiano de suas formas de vida (ou seja, nos próprios laços comunitários) os fundamentos para tais práticas.

Esta economia popular permite a geração de trabalho para aqules que estão as margens dos circuitos formais da economia, constituídos principalmente pelas esferas do Estado e do mercado, entretanto os níveis de renda que se obtém são bastante frágeis, garantindo, na maioria dos casos, apenas a sobrevivência dos grupos implicados em tais projetos. O desafio desta economia popular consiste, então, na posibilidade de ultrapassar este plano de uma chamada “reprodução simples” das condiçõs de vida, na direção de uma chamada “reprodução ampliada”. O que ocorre quando as atividades empreendidas impactam sobre as próprias condições de vida mais gerais das pessoas, isto é, seu plano sócio-territorial maior, como a melhoria da infra-estrutura urbana, por exemplo. Este desafio é próprio ao projeto de uma economia popular e solidária e deve ser aqui assinalado em razão precisamente de certas qualidades (ou características) próprias a esta economia popular.

Tais qualidades compreende um conjunto de aspectos que encontram-se absolutamente indissociáveis uns dos outros. Um primeiro desses aspectos concerne a questão da participação ou engajamento das pessoas nos projetos, o que remete ao grau de mobilização popular inerente a tais projetos. Uma segunda qualidade diz respeito ao modo de organização do trabalho, que encontra-se essencialmente baseado na solidariedade. Este registro da solidariedade, que é próprio ao trabalho comunitário, vem acompanhado, na maioria dos casos, de uma série de outros princípios ou valores servindo de guia para a condução das práticas, como a cooperação e a gestão democrática dos projetos.

Neste sentido, de afirmação da solidariedade no interior mesmo da elaboração das práticas econômicas, a economia popular representa uma espécie de prolongamento das solidariedades ordinárias que são tecidas no interior dos grupos primários. Algumas dessas manifestações são bastante visíveis nos meios populares, conforme revelam as práticas mais conhjecidas sob o título de mutirão. O mutirão é uma forma de auto-organização popular e comunitária (coletiva e solidária) para a concretização de projetos ou para a resolução de problemas públicos concretos vividos pelas pessoas no seu cotidiano. Ele consiste em associar o conjunto dos moradores de uma comunidade na realização dos seus próprios projetos coletivos. Os exemplos concernem a construção de equipamentos públicos ou as próprias casas, além de muitos outros. Trata-se, efetivamente, da implantação de atividades que são completamente indissociáveis da vida social do bairro. O final de um dia de trabalho em mutirão costuma sempre se terminar numa grande festa coletiva popular, marcada em geral pela feijoada.

Percebe-se ainda nestas práticas a força da dimensão não monetária. Porém, importa salientar que esta economia popular não recobre o conjunto das atividades desenvolvidas nos meios populares. Neste sentido, importa sublinhar a diferença dessa economia popular em relação a outros modos de atividades econômicas oriundos dos setores populares, como por exemplo o que representa a economia informal. Esta compreende, sobretudo, iniciativas individuais, sem relação com tradições locais nem com laços comunitários. Ela representa uma espécie de simulacro das práticas mercantis oficiais, pois trata-se de reproduzir tais práticas e a lógica que as acompanha, porém sem adoção do registro legal – o que permitiria o acesso à direitos.

De uma certa maneira, a economia popular constitui um dos componentes dessa imensa economia dos setores populares, que além da economia informal e da própria economia popular, compreende ainda outras modalidades muito variadas de comércio sub-terrâneo ou ilícito repousando sob o registro de solidariedades despóticas. Neste sentido, um dos exemplos mais emblemáticos é sem dúvida aquele da organização do tráfico de drogas em certas favelas na periferia de grandes cidades brasileiras. Esta economia do tráfico, baseada em formas de violência extremas, permite, em grande parte dos casos, a garantia de níveis de renda bastante significativo para aqueles ali envolvidos – o que explica em parte todo o seu poder de sedução em relação a certas categorias da população de excluídos, em especial o público jovem.

Assim, buscar as vias de superação de uma lógica de economia popular apenas, parece constituir precisamente o projeto de uma economia popular e solidária atualmente. O desafio, portanto, desta economia popular e solidária consiste na aquisição de um certo nível de institucionalização de tais práticas, afim de impactar de modo mais decisivo sobre o meio-ambiente social e político dos locais onde se inscreve, ao mesmo tempo em que preserva-se suas qualidades de base como a solidariedade, o trabalho comunitário, a cooperação e a gestão democrática dos projetos.

As formas de auto-organização política

A necessidade de superar este desafio de sustentabilidade tem conduzido as práticas de economia solidária na direção de um maior investimento no plano do seu processo de estruturação política como campo. Neste sentido, mais do que iniciativas inovadoras e singulares em termos da abordagem econômica, o campo de uma economia popular e solidária no Brasil se impõe também, cada vez mais, enquanto um movimento de atores em busca de reconhecimento institucional. Este movimento reivindica direitos, interroga as políticas públicas e propõe outras. O objetivo é de propor uma mudança institucional na direção do reconhecimento de um outro modo de instituir a prática econômica. A expressão concreta desse movimento são seus modos de auto-organização política. Estes assumem duas formas principais: as redes e os fóruns. Porém, sendo os fóruns também formas de redes, trata-se então, de dois modos de expressão de difícil distinção e que apresentam ainda a tendência a se articularem, o que remete a um debate político sobre o lugar de cada modo de auto-organização e suas relações tanto entre si quanto em relação aos poderes públicos.

Em primeiro lugar, as redes são formas de auto-organização mais evidentes e mais antigas. Elas consistem num associacionismo mais amplo, compreendendo um certo número de experiências concretas, assim como, de organizações de fomento e apoio que compartilham valores e regras comuns. As redes se estendem em diferentes escalas, entre o local, o regional, o nacional e o internacional. Elas são as formas por excelência de organização dos movimentos associativos hoje. Tal característica comporta inovações importantes em relação a tradição de organização dos movimentos sociais e políticos, com implicações consideráveis no plano da tomada de poder nestas instituições, o que representa uma mudança grande em relação as estruturas anteriores que eram muito hierárquicas. Neste sentido, parece instituir-se novas modalidades de estabelecimento do ato político.

As redes guardam um traço político forte ao constituírem-se a partir exclusivamente das próprias experiências oriundas da sociedade. Elas situam-se assim de modo muito independente em relação aos poderes públicos. Entretanto, levando-se em consideração o lugar cada vez mais importante assumido pelo tema da economia solidária no interior de certas estruturas de governo, que decidem pela criação de políticas públicas para economia solidária, uma relação de interdependência tende a estabelecer-se com os poderes públicos em temos da instauração de novos espaços de intercâmbio e troca de experiências comuns. É assim que fora criada recentemente a rede nacional de gestores de políticas públicas de economia solidária, cuja dinâmica vem testemunhar a complexidade deste campo.

Os fóruns, por sua vez, são também espaços de reunião de atores, entretanto num sentido um pouco mais ampliado, pois supondo também a participação de representantes de instituições públicas de Estado. Ao mesmo tempo em que reinvidicam sua autonomia enquanto espaço de atores da sociedade civil, os fóruns abrem-se para uma relação de interdependência em relação aos poderes públicos.

Da mesma forma que as redes, os fóruns representam espaços de aglutinação de atores para discussão dos seus problemas comuns. O objetivo é de tornar mais legítimo o campo da economia solidária ao tentar fortalecer seu desenvolvimento. Para tanto, a relação com os poderes públicos torna-se importante. É assim que os fóruns se impõem como interlocutores privilegiados do movimento de economia solidária junto ao Estado e, especialmente, a Secretaria nacional para economia solidária (Senaes). Para além de ações pontuais relativas à organização de um movimento de atores com origens bastante diversificadas, a tarefa principal que se atribuem os fóruns parece ser aquela de poder intervir com mais força na construção de políticas públicas através do encaminhamento de proposições. Neste nível, os fóruns encontram um espaço razoável para poder desempenhar um papel decisivo na mudança institucional indispensável para a consolidação deste campo, que diz respeito justamente à instituição de um quadro de regulação jurídico-político (marco legal) permitindo legitimar e fortalecer a especificidade das práticas de economia solidária.

Em resumo, os fóruns, como as redes, apresentam um caráter ao mesmo tempo militante e de assistência técnica. Os fóruns são também espaços de reunião dos atores, porém num sentido mais abrangente em relação às redes, pela presença e participação de representantes dos poderes públicos governamentais. Ao mesmo tempo em que reivindica sua autonomia enquanto espaço de atores da sociedade civil, os fóruns constituem-se como espaços de intermediação em relação ao Estado. Tais espaços reagrupam, desse modo, o conjunto das diversas partes que participam de um movimento de economia solidária (entre pesquisadores, entidades de apoio e fomento, gestores públicos e os próprios atores) cujo engajamento nos fóruns ocorre de maneira fundamentalmente voluntária.

Portanto, no nível das redes e dos fóruns, de algum modo, esse campo da economia solidária, que é um campo em construção, conseguiu dar sinais de um certo progresso significativo no sentido de uma institucionalização necessária para essas práticas. Isto porque, a mudança da realidade e a promoção do desenvolvimento supõe um salto da sobrevivência para a sustentabilidade das iniciativas criadas. Isto quer dizer, sair da condição de precariedade, e conseguir impactar no contexto mais geral da realidade onde atua, para além dos benefícios apenas daqueles mais diretamente envolvidos (o pequeno grupo pilotando uma iniciativa ou empreendimento). Para tanto, o fortalecimento de um marco institucional é de grande importância, em complemento à espontaneidade das iniciativas.

Os fóruns, de certo modo, dão um pouco a mostra de um maior grau de institucionalização do campo, pois já conseguem promover um processo de interlocução política. Mas, ao mesmo tempo, eles têm um papel difícil, porque tentam unificar algo que não é unificado por natureza, já que as práticas são heterogêneas. Isto porque, a economia solidária reúne atores com características e origens distintas, práticas também diferentes, sob alguns ângulos, e que tentam, de algum modo, unificar-se. Trata-se de um processo muito difícil, doloroso às vezes. A história ainda muito recente dos fóruns estaduais revela níveis de conflito e de desgaste importantes, porém tal dinâmica é parte constitutiva do processo de organização social e política de um movimento, acabando por funcionar como um processo de aprendizado da democracia para os diversos atores.

Em suma, as formas de auto-organização política da economia solidária sugerem que existem, nesse campo, atores em movimento. É nesse nível que parece podermos pensar a economia solidária como uma forma específica de movimento social (França Filho, 2006c). Um movimento social, ao que parece, de tipo radicalmente novo, pois operando por dentro da economia.

Considerações finais: a participação crescente dos poderes públicos

Se o campo da economia solidária no Brasil tem evoluído de formas de auto-organização sócio-econômica inovadoras para modos de auto-organização políticos também inéditos no âmbito da sociedade civil, hoje tal dinâmica parece complexificar-se e enriquecer-se ainda mais com uma participação cada vez maior dos próprios poderes públicos. A expressão mais acabada dessa relação tem sido o aparecimento e multiplicação recente das políticas públicas dedicadas ao assunto, sobretudo no nível de prefeituras municipais.

O crescimento progressivo de tais políticas no Brasil levou ao surgimento de um novo ator neste campo, com importante papel a desempenhar: trata-se da rede brasileira de gestores de políticas públicas de economia solidária. De pouco mais de duas dezenas de representações quando do seu surgimento em 2004, esta rede reúne hoje mais de uma centena de representações refletindo o número em franco crescimento de experiências de políticas públicas de economia solidária em curso no país atualmente.

Este crescimento súbito não acontece sem problemas: o tema da economia solidária é muitas vezes capturado no interior de certas estruturas de governo como mais um modismo, apoiando-se em alguns casos em bases muito frágeis de tratamento da questão da geração de trabalho e renda (França Filho, 2006b). Porém, um dos papéis mais importantes da rede brasileira de gestores em parceria com a SENAES e outros atores como a Fundação Josué de Castro é exatamente esse nivelamento necessário na compreensão do tema, que passa por um intenso programa de formação dos gestores públicos em seus diferentes níveis.

De todo modo, há de se ressaltar com base em algumas experiências em curso a vocação importante de tais políticas em redefinir as relações entre sociedade civil e poder político no caminho de sua maior democratização, ampliando efetivamente nossa forma de conceber e realizar ação pública. Isto precisamente em função de um aspecto característico basilar na concepção e implementação de tais políticas, aparecendo de modo mais evidente naquelas experiências mais exitosas até aqui, que diz respeito a necessidade de interações recíprocas entre o poder público e outros atores. Tais interações ou parcerias e articulações tendem a ocorrer em dois níveis. O primeiro deles concerne às articulações com os próprios atores da sociedade civil compondo o campo da economia solidária e seus espaços públicos constituídos, como os fóruns, que se tornam interlocutores diretos na concepção, implementação e avaliação da política. O segundo aspecto diz respeito a vocação de tais políticas em suscitar interações dentro da própria estrutura de governo e máquina pública, incitando ao diálogo e a ação conjunta de secretarias, por exemplo. Isto se deve precisamente a natureza dos problemas mobilizados em matéria de economia solidária, implicando transversalidade de tratamento. Conforme sublinha Schwengber (2006), “essa política demanda ações transversais que articulem instrumentos de várias áreas (educação, saúde, trabalho, habitação, desenvolvimento econômico, saúde e tecnologia, crédito e financiamento, entre outras) para criar um contexto efetivamente propulsor da emancipação e sustentabilidade”. Evidentemente que tais características muitas vezes permanece uma grande intenção, sem efetiva realização prática, pelas dificuldades próprias a natureza da relação política profundamente conflitual, seja no interior de uma máquina de governo, seja entre o poder público e os atores da sociedade civil. Contudo, trata-se aqui de um horizonte começando a desenhar-se como prática e aprendizado para muitos atores em algumas experiências que já caminham nesta direção, por isso que deve aqui ser salientado como uma vocação para o conjunto de tais políticas.

Importa salientar ainda que este caráter de transversalidade no modo de intervenção de tais políticas acima mencionado decorre de uma segunda vocação forte delas que é sua propensão a constituir-se como políticas de desenvolvimento. Ao dirigir-se a um público historicamente excluído, tais políticas respondem a demandas efetivas do campo mais estruturado da economia solidária, mas também induzem processos de auto-organização coletiva e solidária. Neste sentido, a dimensão de política de geração de trabalho e renda numa perspectiva sustentável-solidária (França Filho, 2006b) próprio a tais políticas associa-se diretamente a uma concepção de desenvolvimento pelo enfoque territorial e de visão e regulação da economia consubstanciado a essa idéia de geração de trabalho e renda.

Em resumo, as práticas de economia popular e solidária no Brasil ganharam em complexidade nos últimos anos, afirmando-se como um campo de atores inventando soluções muito inovadoras entre o econômico e o político para a resolução dos problemas cotidianos enfrentados em seus respectivos territórios como decorrência dos processos de exclusão social. De iniciativas originais no plano sócio-econômico; em que se afirma também uma dimensão política forte, seja através da democratização das relações de produção na direção de processos autogestionários, seja com a afirmação de um tipo novo de espaço público de proximidade naquelas experiências em que se vivencia um outro modo de instituir a economia nos territórios através de processos de construção conjunta da oferta e da demanda; surgem em seguida formas de auto-organização política indicando a constituição de espaços públicos de um segundo nível (França Filho, 2006a) em relação aqueles de proximidade; e, finalmente, conhecemos mais recentemente a multiplicação crescente de políticas públicas de economia solidária, inaugurando-se mais um fato novo na dinâmica deste campo, uma vez que tais políticas intervem no seio de espaços públicos em diferentes níveis, redefinindo as relações entre sociedade civil e poder político, numa abordagem ampliada da ação pública.

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NOTES

[1Cet article est la version écrite d’une communication faite à l’occasion d’un colloque sur le monde de l’entreprise et la question sociale organisé à Porto Alegre du 2 ou 5 mai 2006. Il sera publié dans la revue de sciences sociales de l’Université catholique de Rio Grande du Sul (PUC-RS) au cours du deuxième semestre 2007. Nous remercions notre ami G. Carvalho de nous l’avoir transmis. SD